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Relato de abortamento

Eu jamais imaginei que o abortamento fosse como aconteceu por aqui. Sempre vejo relatos de trabalho de parto, aquela coisa toda, mas descrição do abortamento natural, sem intervenções desnecessárias, em que as mulheres podem escolher por esperar, é difícil de encontrarmos. Ainda mais em abortamento acima de 9 semanas, como era o meu. Quase tudo que li era de 5, 6 ou 7 semanas.


E eu realmente não esperava que fosse nem 10% do que foi. Fui surpreendida. Por isso optei por deixar meu processo aqui registrado para que sirva de referência a outras mulheres. A expulsão do bebê definitivamente foi um marco na minha vida.


No dia 06, exatamente no dia em que sonhei que isso aconteceria, comecei com cólicas durante os atendimentos. Eram leves, suportáveis e eu já estava preparada pois já sabia há mais de 3 semanas que o bebezinho havia morrido. As opções me foram dadas, estudei e optei por esperar. Meu risco era menor assim.


Já tinha tido cólicas leves em alguns outros dias. Na sexta passada tive gotinhas de sangramento no papel higiênico. Sempre me sentindo bem fisicamente e acompanhada pelo meu médico e com o apoio de amigas médicas.


Naquele dia 06, ao chegar em casa já coloquei fralda porque percebi que a cólica estava muito intensa. E a partir das 20h as cólicas foram aumentando conforme esperado.


Havia remédios fortes para a dor prescritos para este momento. Mas achei que eles não seriam necessários porque na minha cabeça seriam cólicas mais fortes, pequeno sangramento e só. 😅


Pablo assumiu Bento e eu me deitei nas cobertas e fiquei vendo série, acompanhando as contrações que eram dolorosas mas suportáveis. E me preparei para ser assim a noite toda.


Pensei: "tá doendo muito, bastante, mas é relativamente tranquilo. Vou me distrair com minhas séries e fazer pausas na dor forte."


Inocência. Quando chegou uma determinada hora a dor foi aumentando mais ainda. Eu tinha contrações mesmo. A cada 5 a 3 minutos vinha uma contração que durava cerca de 30 segundos. Pensei que estava "doida" por sentir como se fosse um trabalho de parto. Me questionei se minha cabeça não estava floreando a realidade. E fui ficando muito incomodada e inquieta. Não achava posição. Não queria mais nada ligado, não conseguia ficar com celular e queria mandar a série para pqp. Fiquei andando pela casa que nem barata tonta.


A dor foi ficando intensa demais. Chorei de dor. Pensei que tivesse algo errado comigo. Tive medo. Foi então que decidi enfim tomar um dos remédios que era para dor forte, mas que infelizmente de NADA adiantou.


Fui ficando desesperada com a dor. O sangramento foi aumentando muito. Fui trocar a fralda e nesse intervalo o sangue escorria pelas pernas e eu não conseguia ser ágil o suficiente para não sujar todo o banheiro. Sujou tapete, chão, tudo. Parecia uma cena de true crime. (😅 vamos rir ne?)


Fiquei realmente preocupada. A intensidade da dor era muito superior ao que eu esperava e o volume de sangramento também. Fiquei insegura. Pedi minha irmã para vir para minha casa. Vieram ela e o namorado. Estava com medo de não suportar a dor, desmaiar e não ter quem pudesse ficar em casa com Bento enquanto ele dormia. Pablo fez uma mala para mim caso eu decidisse ir pro hospital.


Ia mandar mensagem pro meu médico tirando duvidas, mas ele me mandou mensagem na hora. Quase um bruxo. Me orientou e acolheu.


Depois falei com uma obstetra amiga e ela me deu mais orientações. Explicou quais os sinais de alerta e que era normal tudo o que eu estava vivendo. Fiquei mais uma vez impactada por nunca ter ouvido a descriçao do aborto como um mini parto. Obviamente não igual, mas muito parecido nas etapas e com uma dor muito superior ao que eu imaginava. Pensei nas mulheres que trabalham CLT, que se esperam pela expulsão natural não possuem direito a mais dias após a expulsão. Pensei nas histórias de abortamento no trabalho que recebi nas semanas anteriores. Passava tudo na minha cabeça. Um misto de indignação, mais uma vez, por algo tão significativo ser tão abafado socialmente.


Minha irmã chegou e foi essencial. Eu estava num momento de dor e desespero muito grandes. Recebi mais carinho e disponibilidade emocional. Do namorado dela recebi um passe. Enquanto isso eu sentia rios de sangue descendo na fralda. Dava para sentir o fluxo e as placas de sangue saindo.


Coagulos grandes começaram descer. Era 23:30 e o sangramento era tão intenso que cheguei a trocar as fraldas a cada 30 min. Comecei a sentir vontade de fazer coco. E fiz com muito medo do bebê sair no vaso e eu não ver. Eu queria ver e tocar. Eu queria fazer um ritual com ele.


Decidi ir pro banho. Nada estava bom. Estava me sentindo um animal enlouquecido, cheio de instinto. Quem sabe a água quente ajudaria? Já tinha tomado 2 banhos e nada. Tomei outro analgésico potente e ele também fez pouco efeito. Pensei: "agora só morfina no hospital. Não é possível que isso tá normal. Eu devo ser muito fraca para dor."


Então minha irmã foi comigo pro banho e ali começou a me doular. Gente, se eu soubesse que seria assim eu teria contratado uma equipe para estar comigo. Juro. A dor da cólica renal ficou no chinelo. A dor do inicio do trabalho de parto do Bento também. Eu ficava bem na posição de cócoras. A dor era menor assim e os coagulos saim mais fáceis. Então ela massageava minhas costas e jogava água bem quente, daquelas que quase arrancam a pele, que eu amo.😅


E assim fiquei quase 1hora no chuveiro. Vinham contrações bem fortes e saiam placas de coágulo bem grandes. Alívio momentâneo, pressão no reto e eu agachando quase sempre. Parecia que uma bola estava sendo insuflada no meu abdômen.


Minha irmã foi encher a banheira para mim, já que a dor não melhorava. Pensei que uma banho de imersão ajudaria. Eu já estava sem lugar, achando que não ia dar certo. E enquanto eu estava sozinha veio uma contração absolutamente intensa. Tão intensa que achei que fosse desmaiar. E então senti algo saindo. Foi quando depois de 6 horas de contrações intensas olhei pro chão do Box do banheiro e o bebê estava lá. Cerca de 4 a 5 cm, com olhos pretinhos, braços e pernas, com corpinho todo formado. Era bem diferente dos coágulos. No início todo coágulo que saia eu achava que era o bebê. Mas foi fácil e nítido vê-lo. Fiquei olhando para ele, só eu e ele, nos despedindo definitivamente. E nada disso me chocou. Foi essencial.


Eu já estava de pouco mais de 9 semanas e imagino que abortamentos mais "novos" não sejam tão dolorosos e nem seja possível ver tão claramente o bebê. Eu não faço a mínima ideia se é assim com todo mundo. Mas recebi tantos relatos semelhantes no direct que achei interessante compartilhar.


Então peguei o bebê no chão do Box com ajuda de uma gazinha e o deixei na pia. Fui para a banheira que já estava cheia e lá as contrações diminuíram muito. Impressionante como meu corpo sabia exatamente que o bebê já havia saído. Fiquei ali relaxando, com contrações agora razoáveis.


Tentamos acordar Bento para estar conosco neste momento mas ele estava embriagado de sono. Andou e deitou do lado da banheira. Havíamos combinado de chamá-lo e já discutimos isso com uma psicóloga. Mas ele não conseguiu e depois nem se lembrava que havíamos o acordado.


Apesar das contrações estarem menos fortes, ainda eram bem dolorosas. Então tomei mais um remédio. Pouco ajudou.


Fiquei ali na banheira papeando com Pablo e minha irmã. Até as dores aliviarem mais.


O tanto de remédio que tomei me deixou meio aérea. Estava exausta e com fome. Maninha foi embora.

Comi, conversei um pouco com Pablo e me deitei. Sentia alívio. Um alívio absurdo pela ausência daquela dor. Me senti meio filosofa. Fiquei divagando e falando sobre a beleza da ausência da dor. 🤣 Me senti meio chapadona.


E está foi uma das experiências mais inusitadas da minha vida. Se alguém me contasse uma história dessa eu acharia que era fantasia de uma mãe que queria parir e que fantasiou um abortamento. E quem sabe não foi mesmo?


Mas o fato é que a experiência foi intensa, muito dolorosa, marcante e essencial para finalizar meu processo. Me sinto forte para recomeçar. De alma limpa. A descriçaodo ocorrido pode ter sido dura e cruel para quem vê de fora. Mas para mim foi cicatrizador. A intensidade daquela noite sugou parte da minha tristeza. Parece que reuniu e levou as emoções mais incômodas.


Eu não saberia lidar com essa perda sob o frio hospitalar, com focos cirúrgicos e barulhos de instrumentos médicos raspando meu útero. Nada disso pertencia ao que meu corpo me pedia. E fui respeitada e orientada pelos profissionais envolvidos. Sabendo que a intervenção poderia ser necessária em algum momento e que ainda pode ser se houver restos ovulares.


Muita gente só se preocupou nesse processo se eu não ia morrer de infecção, se um bebê morto na barriga não ia me deixar deprimida, que era demorado demais. Que eu era maluca. Mal sabem estas pessoas que o que eu não suportava era a ideia de ter meu filho triturado, esmagado no meu útero. Raspado com instrumentos de metal e jogado em algum luxo hospitalar. Ele merecia sair inteiro, eu merecia ve-lo e ele merecia uma despedida. As vezes as preocupações dos outros mais incomodam do que ajudam. Porque as pessoas pensam com a cabeça delas e para ajudar alguém você muitas vezes precisa falar menos e ouvir mais. É só isso. O oposto do que eu escolhi poderia ser sentido como uma violência e era essa violência que as pessoas queriam me fazer optar. Os palpites são sempre os piores momentos da caminhada.


Amanhã vamos enterrar o bebê num ritual, junto com Bento. E estamos certos de que, sem romance, essa experiência veio muito a nos acrescentar. Fui devolvida à minha origem animalesca e isso me fez um bem danado. Não sei explicar o porque.


Hoje me sinto bem. Só muito cansada, querendo dormir mais e manhosa. Sigo sendo muito bem cuidada e me sentindo amada. Farei ultrassom para avaliar os restos ovulares e um hemograma para ver a perda sanguínea que parece ter sido além.


Como eu queria que todas as mulheres pudessem viver o luto como estou vivendo. Estou orgulhosa da minha história e de como fechei o ciclo.


Obrigada bebê. Obrigada por nos escolher e por podermos ter vivido toda esta intensidade juntos. A única certeza é a de que você foi e é muito amado.


Fique em paz, que eu estou !


Mamãe.

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